sábado, 15 de outubro de 2011

Eu, meu melhor amigo

Boa tarde, leitores

Aqui vai mais um trecho do personagem Dietmar Hoeckner da história "Bestas do Apocalipse". Uma parte que mostra uma reflexão sobre sua própria decadência.

"-Domingo a tarde, frio de doer os ossos...
Olho o relógio, são 16hs...
Olho... Penso de olhos fechados... Olho ao redor...
Minha casa do lixo. Todo mundo que passa por esse ferro velho
Elogia minha casa, feita de plástico, papelão e metal
Que tem uma parte quente para o inverno
E uma parte fria para o verão
Que é o único lugar para onde posso voltar
Depois de vagar pelas ruas de Munique
Pegando comida no lixo dos restaurantes
Fazendo algum trabalho braçal
Procurando algum emprego ou depois de ir no serviço público de saúde.
É triste que um engenheiro formado na Universidade de Munique
Que teve um trabalho brilhante na Blitzen
Que foi premiado, admirado, copiado e idolatrado
Terminar abruptadamente, apenas aos 26 anos, tendo que morar clandestinamente num ferro velho.
Foi pra fazer uma casa no lixo que eu estudei?
Onde estão meus amigos? Onde estão meus antigos colegas de trabalho? Minhas antigas amantes?
Minhas antigas idéias? Meus sonhos e minha ideologia?
Onde está minha vontade? Aquela força que fazia meus olhos arderem como uma chama azul
E que encantava a todos que olhavam por eles...
Hoje eu evito de olhar as pessoas nos olhos, tenho vergonha
Não sirvo pra nada, não tenho nada, não faço falta para ninguém
Minha mente não é mais atrevida e ousada
Meus olhos não enxergam mais direito
Minhas pernas latejam após qualquer caminhada...
Minha boca está torta, levemente pro lado esquerdo... devo ter tido algum derrame...
Mais uma mácula no meu físico antes apolíneo e imponente
Hoje, pesado, encurvado, doente...
O que eu posso fazer afinal? Penso constantemente em tirar minha vida.
Será mesmo uma alternativa? Com certeza é solução final e irrevogável.
Será a melhor solução? Provavelmente, pois se a vida não é boa, por outro lado, ninguém sentirá falta...
Então, se não me entrego, percebo ali, escondido, no fundo do coração que já foi selvagem e inquieto
Que ainda sobra um pequeno laivo de impetuosidade, vontade, capacidade... Alguma coisa boa ainda resta.
Ali estão num cantinho muito especial, reservado e secreto
Ensinamentos e mensagens passados por grandes homens e mulheres que em algum momento
Fizeram parte da minha vida, me amaram, respeitaram e confiaram na minha capacidade
Os valores de zelo, justiça, igualdade, caráter, personalidade, honestidade e lealdade que me foram ensinados por meu pai
A grande força instintiva de proteção da minha mãe...
O perfeccionismo que meus mestres me cobravam, confiando que eu seria capaz de superar muitos limites
Mas agora, todos já se foram...
Pensando bem... Será que foram mesmo? A imortalização não seria isso? A perpetuação de uma face do ser por pessoas?
Portanto, eu decreto, a partir de agora, que eles estão eternizados, e eu, agraciado com a honraria de ter convivido com esses luminares, decido fazer alguma coisa de novo...
Poderia eu tranquilamente, vender minha personalidade
Com dignidade, vou bater a poeira, pegar meu casaco de saco de batatas, e sair para procurar comida
Pois prefiro ser um mendigo, morar no lixo, comer restos, estar muito doente e me vestir com trapos variados
A roubar, cometer injustiças, mesquinharias e demais inglorificações da alma; estar no sistema desse modo, fazendo parte e me fartando dessas corrupções de caráter
Pois, se o que me faz forte, é justamente o contrário... O contrário dessa grande corrupção... Porque outros também não se sentem indignados? Será que eu estou sozinho pensando assim?
Pois bem, se estou serei o último dos puros, morrerei honrando o que acredito...
E farei meu último suspiro feliz, porque, saberei que à minha maneira, lutei do jeito que pude e além
Pelas coisas que acreditei
Mesmo que faça parte dessa luta, agora, pegar um pedaço de alumínio velho, usar como muleta e vagar pelas ruas da cidade
Provocando medo e repulsa nas pessoas, sentindo vergonha do que sou, num esforço para existir
No fundo, esperando que alguma coisa boa ainda possa acontecer, enxugando as lágrimas..."


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